Fiquei igualmente atônito ao testemunhar a opulência semântica que vertia, transbordava do anime. Talvez seja a única obra de Dragon Ball que conseguiu, até o fim, ser fidedigno com o estado, em primeira instância, “regressivo” e vulnerável do Goku a uma criança, mesmo com a suposta contradição que seria o SSJ4 (hei de retificar esta falácia), e trabalhar isso ao longo da obra de maneira que se coadune tematicamente com os outros elementos de DBGT. Em primeiro lugar, Dragon Ball GT não é um coming of age e desde a primeira série é um erro atroz o encarar de tal maneira, Goku, numa visão confuciana — confucionista (cujo pensamento concentra-se no cultivo da virtude em um mundo moralmente organizado) — e em artes marciais, sobretudo, chinesas, sempre foi associado arquetipicamente a um Makoto, i.e., a modalidade de vida que presa o individuo em coalizão, em harmonia, com o bater do seu coração, demonstrando sinceridade na palavra porque existe conformidade entre palavra e ato, vive de acordo com seu coração, porque é imaculado da vileza dissimulada e enganosa a qual é a moral humana. Portanto, essa natureza Makoto é uma virtude a ser preservada e não transfigurada a uma suposta maturação humana (o “tornar-se adulto”) falha, aqui em DBGT. Os dois primeiros episódios da obra já discorrem isto apresentando personagens “disfuncionais” (o Goten namoricando, priorizando sua pretendente amorosa em detrimento de uma potencial destruição em escala planetária causada pelas esferas, o Trunks constantemente buscando subterfúgios para evadir, fugir da corporação cápsula e das responsabilidades [das pilhas colossais de papéis a serem conferidas e do cronograma diário asfixiante a ser transpassado] como um dos principais encarregados da empresa, além do Goku como aquele que abandonou sua família, sua neta, para ir treinar com Ūbu na sala do tempo por um tempo longuíssimo, etc.), porém, normalmente numa obra convencional, esta nos intuiria de que tais personagens sofreriam uma alomorfia assim que fossem interpelados por uma enorme responsabilidade recaída em seus ombros (a de reunir todas as esferas antes do tempo limite ser alcançado e o planeta terra dizimado, destruído), todavia o que vimos no decorrer desse primeiro grande arco (a Ultimate Dragon Balls Arc) é os personagens centrais, invés de abdicar de suas puerilidades e ludicidades em prol de um empertigamento, de uma austeridade, etc., o que fazem, na verdade, é resolver as situações periculosas (e que afetam os habitantes de outros planetas) reiterando a própria natureza infantil inerente de suas essências, imanente a cada um deles, por meio de comportamentos impulsivos, recreativos (a luta, em DBGT, perde seu caráter épico e dá lugar ao picaresco), jocosos, etc. (o grupo de Goku optando, após acusados de serem criminosos e expostos em cartazes de procurados, se renderem para acelerar toda uma burocracia e, quiçá, tramoias para se aproximar de Don Kiā e resolver o problema que assola o planeta Imegga [num aclive a qual é a luta contra Ledgic], Goku exercendo o ofício de dentista, num faz de conta, para conseguir apreender a esfera alojada no dente do humanoide gigante do planeta Monmaasu ou na luta contra a versão mais poderosa de Ludo [vale ressaltar que esta entidade assume a forma de uma criança/boneco gigante e o “Ludo”, etimologicamente, pode muito bem vir do latim ludus [lúdico] que remete a jogos e divertimento, pois, ora, não seria Ludo o maior instrumento para as ambições pueris, unidimensionais, do Dr. Myuu de conquistar o universo? E que, aliás, um de seus principais subalternos tem como maior obsessão colecionar bonecas e brincar de faz de conta com elas] que para assegurar sua derrota os personagens tem que dar um ataque sincrônico, graças ao poder dos Irmãos Para [excepcionais], cuja preparação do golpe deve ser modulada por meio das palavras “leite, carne e pão”, evidentemente sugeridas por Goku), e assim que este grande arco se encerra, os personagens retomam suas vadiagens e comportamentos “irresponsáveis”. Já a Pan é algo a ser pautado. Primeiro de tudo, personagem maravilhosa, a única que se bifurca dos demais, pois, como filha de Gohan (o único que não se adequa a modalidade de vida Makoto, não espanta ser este o motivo principal de torná-lo um dos personagens mais ofuscados da série), projeta um ideal nos adultos, no “se tornar adulto” (seu pai talvez seja o grande modelo disso), não é à toa ser tão hostil no começo da obra, pois com todo o ímpeto quer se transfigurar numa imagem que busque uma equanimidade com todos, porém sempre minguada pelos que a rodeia e destituída do posto de semelhante. Para Pan, ser criança é o mesmo que viver em privação (pois é na zona do perigo — que ela nem sequer pode tatear — que se encontra os momentos realmente divertidos, de fruição e de emoções indomáveis), algo que vai deixando ela a medida que melhor convive com Gill e Goku (assim como também ao interpelar o perigo, este intermitente durante a aventura de adquirir as esferas), pois quanto mais a obra avança, mais vulnerável ela vai ficando e, inconscientemente, se permitindo o afeto, o carinho, com Gill e, sobretudo, com seu avô. A beleza da personagem se encontra nesse processo de permissão, autoaceitação, em se tornar uma criança novamente, tudo a partir da proteção que vai recebendo por Gill (no espetacular episódio 15 — ouso até dizer que um dos mais bem dirigidos que testemunhei este ano) e pela imagem adulta de Goku projetada pelo Super Saiyajin 4. É neste ponto que indago: por que a lendária transformação em Super Saiyajin na Saga Namekusei é tão icônica e insuperável durante Dragon Ball Z inteiro? Talvez por estar associada ao grande embate com Freeza, o vilão mais icônico da franquia… Freeza (permita-me tangenciá-lo) é um personagem que, mesmo inteiramente pueril, sua moralidade foi totalmente conspurcada pelo extremar dos desejos negativos, acarretados numa maldade inconsequente e imanente da natureza infantil (sobretudo por ser uma criança mimada superpoderosa e com “poderes geopolíticos” sem limites), algo que deve servir de espelho para Baby (a contraparte negativa de Pan, pois Baby começa num estado de fragilidade e, quanto mais avança, se comprova uma criança corrompida pelo desejo de se predominar aos outros ao parasitá-los) em DBGT. Claro! Há diversos fatores por trás dessa iconicidade, sobretudo todo o processo dificultoso, árduo, dos personagens se interpor as transformações e metamorfoses que Freeza sofre ao longo da luta, além da tenacidade do vilão em conseguir resistir a todos os seus adversários e, por conseguinte, das mortes inevitáveis e memoráveis, causadas por Freeza, desse trecho que desboca na fúria de Goku, algo inédito na obra até aquele momento, pois Goku sempre encarava os adversários que enfrentava e as lutas que travava com certa admiração ingênua, com auspiciosidade e empolgação lúdica por ser um momento que ele pode exceder seus limites, viver em função da luta, da batalha, e alcançar capacidades ainda maiores por consequência deste duelo, algo totalmente esfacelado, solapado, após notar, vivenciar a crueldade, a maldade da criança Freeza (um tipo de criança totalmente contrária a Goku) que macula até esse prazer lúdico e ritualístico da luta, a morte de Kuririn, portanto, simboliza a inevitabilidade do estado adulto (a cólera que deve ser canalizada em si até forçar uma alomorfia invés de dispersar em tudo que lhe rodeia, como é com a transformação em Oozaru) se interpor, forçosamente, ao estado de criança de Goku (não é à toa, a partir deste momento, os próximos arcos priorizarem mais a responsabilidade dos personagens em liquidar o vilão da vez, invés de centrar na fruição proporcionada na luta, no ato de lutar, e somente. E neste momento que a obra deixa, e se desprende, da modalidade de vida Makoto), sendo praticamente um rito de passagem que a obra passa e que já era prenunciada, cortejada, por Vegeta instantes antes da própria morte na sua última súplica a Goku: “Não seja burro, volte a ser agressivo, se perder essa amabilidade, tenho certeza de que se tornará um Super Saiyajin”. O Super Saiyajin 1, portanto, nasce a partir da raiva, do ódio mais intenso, concentrado e personificado. A mudança do ser vem a partir da fúria do guerreiro que não encara mais a luta apenas como algo lúdico. Já o Super Saiyajin 4 nasce a partir das lágrimas de compaixão e da necessidade de amparo de Pan, a transformação só é completada assim que racionalizado o afeto que Goku sente por sua neta. O Super Saiyajin 4 nasce não através do ódio, mas sim do amor e da racionalização do amor como algo imanente de um ser poderoso (o ser racional, mas racional de suas próprias emoções), adquirindo, portanto, um visual não só extremamente icônico, tão icônico quanto o Super Saiyajin 1 vale ressaltar, mas que se torna essa balança entre homem e macaco, o Deus macaco Hanuman ou Sun Wukong, que mesmo parecendo adulto, nunca perde sua ludicidade, encontra um equilíbrio entre o ser que protege e o ser que se diverte.
No mais, consegue ser uma obra tão engraçada quanto o “DB clássico” com o Goku criança. Obra totalmente espirituosa e com um planejamento de produção impressionante, tendo uma consciência ímpar, por parte sobretudo do Osamu Kasai, de quais episódios depositar um maior valor de produção e quais episódios moderar. É a obra, diferente do Daima, plenamente digna do Toriyama (mesmo não escrito por ele), uma obra que ao longo das décadas foi escorraçada e descanonizada quando, na verdade, traz o melhor desfecho possível para Dragon Ball, uma despedida emocional e que hoje em dia é impossível acontecer isso com Dragon Ball (mesmo após o falecimento do Toriyama), sempre hão de reciclar ideias e continuar e estender as séries de DB ad infinitum, um modelo danoso criado pelo Super. Já Dragon Ball GT, mesmo não tão benquisto, coloco-o ao lado do Dragon Ball “clássico”, uma obra que ganhou totalmente o meu respeito nessa revisão, obra seminal, algo que provavelmente nunca vão alcançar novamente com Dragon Ball, sobretudo por essa imagem irritante que Dragon Ball está associado atualmente e que o culpado é, evidentemente, o Super. Sinceramente, que se explodam o Dragon Ball Super e o Toyotarō!
Aparentemente, sou mais panglossiano que você, haha! Já acho espontaneamente cômico o tom amador da dublagem reverberar na linguagem da obra, sobretudo se partirmos, p.ex., do fato de que (ao menos, com base em sites como AniList e IMDb) há dois Shimorenjaku na dublagem e os dois dublam diversos personagens da obra e a impressão que fica é que há apenas um dublador interpretando praticamente todos os personagens da obra (tanto o narrador quanto o Policial que evade da cena principal para ir assistir “animes ilegais” lá do primeiro episódio quanto a gestante que, mais adiante, se revela como Claudia [num tom sério de revelação disruptiva], etc. etc.) pela semelhança da voz, claro! Com exceção do grande Junichi Goto, que concede a voz para o iconográfico Inferno Cop. É já nesse caos tonal, sonoramente falando, que a obra se atraca. E não acho que é somente a cena do projetil se ricocheteando nos personagens, no segundo episódio, engraçada e se esgotando nisso, o próprio episódio três, “Seigi no Shōsa”, acho bem engraçado também: mudando a locação para a Suprema Corte e o Juiz, diante o Mr. Judge e o Inferno Cop, inocentando e sentenciando a morte, repetidamente, o personagem-vítima a partir de qualquer argumento (não importando o quão chulo seja) e rematando com o Inferno Cop, com a paciência esgotada, alvejando e explodindo o Juiz na sequência que, bom reiterar mais uma vez, acho divertidíssimo (claramente uma sátira a todo o sistêmico processo de convencimento e do exercício da retórica no direito). Contudo, reconheço que o maior problema da obra é na estrutura que, em muitos momentos, beira a aleatoriedade, quiça binária, de experimentação narrativa e metanarrativa, até gosto das piadas com a Marvel (das sátiras de muitas estórias como, p.ex., aquela do enlouquecimento da Feiticeira Escarlate), é uma obra que é contemporânea a gradação notável da MCU lá em 2012, há reflexos interessantes nisso, todavia, não é suficiente para conferir uma unidade ao anime. Gosto dessa natureza caótica do anime, acho o Inferno Cop uma amálgama divertida do Ghost Rider e do Axe Cop, acho charmoso esse estilo motion comic adotado pela obra, porém essa aleatoriedade de situações a cada “esquete” acaba trazendo episódios muito oscilantes. Dito tudo isso, prefiro 1000x me chafurdar na experiência (de experimentabilidade linguística) proposta em Inferno Cop do que ficar a deriva numa produção asquerosa e resignada, como é a de Blue Lock: PowerPoint The Animation.
Sim, hahahaha! Este anime em questão, aliás, promete ser ainda mais bem quisto por mim após a experiência que tive com Sousou no Frieren. Talvez Keiichirō Saitō seja um diretor tão aprumado nas obras que gestou pelos trabalhos em Key Animation cujas obras, muitas delas, que este fez parte da produção, são significativas para a indústria em quesito visual e linguístico, inegavelmente.
Possivelmente junto de Dungeon Meshi, Sousou no Frieren é o anime que melhor representa esse apogeu de uma visão pós-moderna diante os tropos e os chavões de uma estrutura e setting de Dungeons & Dragons na nossa contemporaneidade, sobretudo a partir do cômico e do burlesco (inegável não associar, p.ex., ao alívio cômico ancorado na Frieren que, independente da dungeon que o grupo dela esteja realizando expedição, a elfa sempre cairá na armadilha do Mímico decorrente de sua obsessão por grimórios apesar da sua futilidade, da ineficácia de determinados grimórios para além de sua especificidade estritamente contextual), mesmo que muito de sua finalidade se encontra na reiteração simbólica de arquétipos importantes na base de um high fantasy como o Herói Himmel que, independente de não ter conseguido retirar a espada cravejada na rocha, conseguiu derrotar o Rei Demônio, instaurar uma paz duradoura naquele mundo e ser tratado, através das gerações, como uma lenda (portanto, essa construção do mito do Herói lendário Himmel é decorrente, sobretudo, pelo relato oral e empírico do coletivo de camponeses, civis, etc., impactados por suas pequenas ações altruístas ao longo da jornada de sua expedição com Frieren, da presença onipresente dele em diversas cidades e vilas que perpassou, mesmo após sua partida [por meio de uma estátua que contém sua imagem mais jovem e próspera, não é à toa ser a única imagem que as digressões e divagações da Frieren retornam e se escoram], que ao longo da história se permutaram, substituíram, ao fato dele não ter conseguido retirar a tal espada da pedra). É uma obra tanto sobre a desestruturação desses signos diante dos contextos que as fundam quanto uma obra sobre a ratificação de muitas delas como elementos imanentes, essenciais, numa construção narratológica e mitológica.
Dito tudo isso, o aspecto que mais me apeteceu foi toda a relação da obra com o tempo, o tempo num sentido enfático, que se encontra em todas as instâncias da obra, algo que, sinceramente, na indústria (num parâmetro atual), só vejo o Miyazaki tratando e tangendo em toda sua dimensão complexa (algo que, falo com todo o pesar, o Hosoda desaprendeu em seus últimos trabalhos). O Keiichirō Saitō demonstrou ter um domínio muito grande em lidar com a temporalidade das cenas, dos diálogos, da dimensão devastadora (ou tênue, como um sopro de ar fresco) de um corte, de uma elipse que salta sei lá quanto tempo no futuro, que conclui eventos ou cenas seminais que demandavam mais do que um pulo temporal amenizador, porém, que torna aquele recorte memorável (sublimador) justamente a partir da abstenção de uma contextualização que, mesmo que generosa, seria uma excessividade, quiçá tola, de um banalismo, pois a obra tem um controle ímpar de quando estender a cena e de quando a cortar. O cuidado, o tato (o senso estético), em lidar com o tempo, já põe Saitō à frente da maioria dos diretores de animes contemporâneos. Todo o tema da memória (das projeções criadas após a infância e da vertigem do inconsciente em regressar a ela após o transcurso retilíneo e imutável do tempo), da velhice (da fragilidade que ela submete a carne e a consciência, mas também do vigor que concede a alma após reconhecer o conjunto de experiências empíricas que o constitui como um ser potente, como é visto num dos momentos mais bonitos da obra quando Serie reconhece Denken como um mago de primeira classe, reconhece uma centelha de potencial que ainda não se extinguiu dele, isto não poderia ser mais Hermann Hesse, ou “Com a maturidade fica-se mais jovem”) ou da brevidade da vida, etc., não poderia me encantar mais do que é feita aqui, numa obra tão madura quanto Sousou no Frieren, e se, aliás, é para falar sobre a brevidade da vida não tem como não entoar Ricardo Reis (Fernando Pessoa):
“Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.”
Boua, Sayen! Muito bem ponderada essa sua nota de Blue Lock. Não me entenda mal, tanto o texto quanto a linguagem da obra é hircosa, mefítica, purulenta, contudo, é inegável não reconhecer que os problemas de Blue Lock começam a partir daqui:
A experiência de ler Jun não poderia ser mais similar a experiência descrita por Joseph Campbell ao contemplar aquilo que poderia ser tanto um Iwami Kagura quanto um rito místico Shintō, tanto nos rituais preparatórios e decorrentes, ulteriores, quanto nas suas concessões com a natureza: "[...] Os pinheiros, as rochas, as florestas, as montanhas, o ar e o mar do Japão acordam e emitem seus espíritos e sons característicos. Eles podem ser ouvidos e sentidos por toda parte. Quando os dançarinos se retiram e a música cessa, o ritual está concluído. Viro-me e olho novamente para as rochas, os pinheiros, o ar e o mar, e eles estão tão silenciosos quanto antes — mas agora eu sinto que eles são habitados, e me dou conta novamente da maravilha que é o universo".
Não obstante, há Ishinomori Shotaro como mangaká e cartunista, ou seja, inigualável, inimitável, aquele que, mesmo proferido num episódio jocoso, foi cognominado pelo "Mangá no Kamisama", Osamu Tezuka — seu mentor —, como o Deus dos mangás (inelutavelmente, como o próprio Tezuka já o era). Contudo, imaginando além, Ishinomori seria mais precisamente um Deus xintoísta dos mangás, um Kami (神) que escreve, decupa e desenha com o arrojo e, equidistantemente, com a serenidade que os grandes poetas do período Edo — Bashõ e Onitsura — tecem suas líricas tapeçarias haikais diante suas vidas errantes, vagueantes e panteístas. A poética de Jun também se encontra nesse reflexo entre o eu-lírico (porém em Jun, em constante reatividade, em processo de diluição e confusão) sobre a inevitabilidade do tempo como entidade fenomenológica do movimento retilíneo (dos quadros, da maturação dos corpos, da metamorfose das criaturas, da folha que despenca gradativamente entre as sarjetas da página — do capítulo "To Wait" — até o contato dela na superfície da água provocar/contrapor a uma tempestade marítima e climática, etc. etc.) e da irrevogabilidade da circularidade do movimento samsárico (dos eternos reencontros e desencontros) expressas no In-yun budista exercida em Jun, já a metapoesia em Jun é o esforço da última fração do cogito, existente numa obra sobre tantas vertigens temporais, em ruminar aquelas experiências sensoriais a partir da reflexão enquanto arte, enquanto expressão artística, enquanto exercício estético e linguístico. A criação (um rito mimético que torna turvo a linha que separa a ficção e a realidade na obra) é o que permite a passagem do personagem Jun (e de nós, leitores) enquanto testemunha(s) terceira(s) para participante(s) involuntário(s) de uma experiência metafísica e patafísica tal qual a relação que o próprio protagonista teve com o signo da árvore (no decurso da obra) que, aliás, começa no terceiro capítulo (The Time Horse) e se amplia e se culmina no sétimo capítulo: "Soon, Autumn Will Be Here, and Then Winter Will Come", ou seja, o capítulo em que Jun se funde com a árvore e, por conseguinte, experiencia todo o efeito do tempo, da auspiciosidade de um mundo animista, da contingencialidade da temperatura, do clima, etc., na órbita, lhe rodeando, lhe envolvendo enquanto existe em um estatismo sereno e idílico, contraposta a relação funesta que Jun tem com o passado, no capítulo "The Legend of the Cold Wintry Wind", a partir desta mesma árvore, agora carcomida pelo tempo, pelo inverno face ao capítulo mais adiante, Spring Evening, capítulo este que se cria um espaço teatral para uma dança temporal circular, constituídas por pétalas de cerejeiras oriundas da mesma árvore, já a destruição da árvore, em The Girl (uma contraposição clara ao nome da bomba atômica lançada em Hiroshima, "Little Boy"), simboliza a cisão de Jun e o feminino (tanto como sua contraparte, quanto como o feminino imanente na natureza) que, após a explosão atômica o capítulo seguinte é o congelamento total do mundo de Jun, o capítulo se chama, literalmente, "The Ice Planet". Não é à toa que, semiologicamente, o vento assume-se como um dos maiores representantes imanentes do tempo (não é à toa o referir como Sr. Vento em certo trecho), este é fugidio para Jun e para ele é ensinado que se tornar o "coração do vento" é entender o coração das pessoas, dos animais, das coisas e, consequentemente, é conseguir se irmanar com o criativo, romper o bloqueio criativo que o consternava no segundo capítulo, pois o tempo é "um mago, governante da vida e da morte, ele vai responder todas as perguntas", caso esteja aberto a ela, ser um com o tempo, aspecto este refletido na linguagem do mangá num modelo de quadrinização que, mesmo comum no passado (segundo o próprio Shotaro), é rearticulado de maneira ímpar aqui, com quadros verticais e horizontais cuja duração é diminuta, as elipses operam através das sarjetas e os quadros estão relegados a efemeridade dos acontecimentos, relegados ao destino de separação do casal, da maturação e desvanecimento das coisas, do ciclo samsárico, etc., um tipo de clausura (num mangá que contém mais sarjetas do que grades em sua diagramação e decupagem) que em momentos pontuais a obra se emancipa e se coaliza com um valor surreal em sua imagética — de Max Ernst a René Magritte — logrando uma liberdade de expressão para além da relação entre quadros e sarjetas, já textualmente a maior inspiração criativa de Shotaro está na ascensão da ficção-científica literária que vai do final do século XIX até o fim dos anos 1960 — de H. G. Wells a Asimov e Arthur C. Clarke — nessa vontade, doravante, de desbravar espaço e tempo (estes em movimento de precessão ininterrupto) nunca antes desbravados. Uma obra, sem sombra de dúvidas, polímata na sua pluralidade de referências (ocidentais e orientais) e inclinações temáticas, mesmo que seja, uma obra, em última análise, sobre a deslocação inevitável ao Brahmā por meio da expressão artística, nesta lógica a escola budista japonesa, Mikkyô, tem grande influência ao imaginar a arte como intermédio soteriológico do homem ao Mukti.
No meu dialeto, digo, com todo pesar, que os problemas de produção deflagrados a partir do segundo episódio de Uzumaki prejudicam a construção minuciosa e estridulante feita no tão estentóreo primeiro episódio. Fiquei hipnotizado pela construção praticamente Expressionista do ep. um, do cuidado na animação nos movimentos enfastiantes (dos corpos, da matéria) e rigidamente verossímeis (fizeram questão de pôr Shuuichi repetindo, pelo menos uma vez, seu ritual diário, com enfado na postura e no deslocamento similarmente a de um sonâmbulo ou moribundo, no ato de desembarcar na estação Kurouzu), críveis, só que facilmente solapadas pelo horror que migra do corporal para o orbital — por vias climáticas e fenomenológicas —, e quando o horror se espraia as hachuras e ranhuras são o que dão espessura aos assombros dos personagens, muitas vezes até pelos enquadramentos que evocam, fidedignamente, os quadros do mangá, mas numa ressonância diferente, pois o impacto dessas cenas não estão mais expressas na virada espontânea de uma página como se fosse a virada de um corredor que jaz algo maldito e pestilento, perturbador, mas mais numa consumação climática feita mediante uma construção atmosférica (sobretudo sonora), do ritmo e da gradação dos eventos até se culminar em algum daqueles quadros tão marcantes da obra original. Tudo fluindo numa decisão corajosa de Hiroshi Nagahama e Yuji Moriyama em quebrar toda a progressão quase episódica do mangá, da cadência dos eventos que são muito bem sedimentadas na "bizarrice da vez" em cada trecho de Uzumaki, optando em tornar esses eventos concomitantes — logo que não teriam episódios suficientes para adaptar a estrutura do mangá — uma decisão que achei perspicaz e que no primeiro episódio foi dirigido de maneira polifônica, harmônica, pois o clima de "esquisitice" e paranoia naquela cidadezinha acaba, ao insurgir em diversos pontos da cidade, por se equalizar e gerar um afluxo que sobrecarrega o espectador, pondo este numa sensação diferente de quem lê o mangá, pois o leitor acaba ancorado na "bizarrice" do momento isolado, pressurizado. Infelizmente tudo isso que narrei e dissertei se perde nos outros episódios, a sensação que fica ao assistir os outros episódios é de abandono total das mãos criativas dos diretores, tudo parece ser feito sem diligência e cuidado algum, as cenas perdem sua aderência, seu impacto, as elipses só esvaziam temporalmente todos os eventos que coexistem em cada episódio, parece haver um esvaziamento total de intenção e de espírito. Uma pena.
É, acho que é uma diferença crucial no Sekiro é não ser tão focado em RPG.
Ainda não vi o segundo episódio do Uzumaki. Acabei desanimando um pouquinho com os animes. Só assisti direito o Ranma, pela nostalgia. D: Vou tentar assistir esse domingo aí depois te conto minhas impressões.
Sim, é verdade. Daqui pra frente é Elden Ring ou outras franquias de nome diferente. Na verdade, não acredito que Elden Ring vai ter continuação.
Cara, Sekiro eu achei muuito diferente dos outros. >.< Realmente não consegui me adaptar ao estilo de combate, como posso dizer? É mais estratégico, ataque e defesa, slá... não tô dizendo que seja um mal jogo, pelo contrário, é ótimo. Mas acho que não é pra mim. D:
Gostei do Uzumaki sim. De repente é a melhor adaptação de uma obra de Junji Ito pra anime, até agora.
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No mais, consegue ser uma obra tão engraçada quanto o “DB clássico” com o Goku criança. Obra totalmente espirituosa e com um planejamento de produção impressionante, tendo uma consciência ímpar, por parte sobretudo do Osamu Kasai, de quais episódios depositar um maior valor de produção e quais episódios moderar. É a obra, diferente do Daima, plenamente digna do Toriyama (mesmo não escrito por ele), uma obra que ao longo das décadas foi escorraçada e descanonizada quando, na verdade, traz o melhor desfecho possível para Dragon Ball, uma despedida emocional e que hoje em dia é impossível acontecer isso com Dragon Ball (mesmo após o falecimento do Toriyama), sempre hão de reciclar ideias e continuar e estender as séries de DB ad infinitum, um modelo danoso criado pelo Super. Já Dragon Ball GT, mesmo não tão benquisto, coloco-o ao lado do Dragon Ball “clássico”, uma obra que ganhou totalmente o meu respeito nessa revisão, obra seminal, algo que provavelmente nunca vão alcançar novamente com Dragon Ball, sobretudo por essa imagem irritante que Dragon Ball está associado atualmente e que o culpado é, evidentemente, o Super. Sinceramente, que se explodam o Dragon Ball Super e o Toyotarō!
Dito tudo isso, o aspecto que mais me apeteceu foi toda a relação da obra com o tempo, o tempo num sentido enfático, que se encontra em todas as instâncias da obra, algo que, sinceramente, na indústria (num parâmetro atual), só vejo o Miyazaki tratando e tangendo em toda sua dimensão complexa (algo que, falo com todo o pesar, o Hosoda desaprendeu em seus últimos trabalhos). O Keiichirō Saitō demonstrou ter um domínio muito grande em lidar com a temporalidade das cenas, dos diálogos, da dimensão devastadora (ou tênue, como um sopro de ar fresco) de um corte, de uma elipse que salta sei lá quanto tempo no futuro, que conclui eventos ou cenas seminais que demandavam mais do que um pulo temporal amenizador, porém, que torna aquele recorte memorável (sublimador) justamente a partir da abstenção de uma contextualização que, mesmo que generosa, seria uma excessividade, quiçá tola, de um banalismo, pois a obra tem um controle ímpar de quando estender a cena e de quando a cortar. O cuidado, o tato (o senso estético), em lidar com o tempo, já põe Saitō à frente da maioria dos diretores de animes contemporâneos. Todo o tema da memória (das projeções criadas após a infância e da vertigem do inconsciente em regressar a ela após o transcurso retilíneo e imutável do tempo), da velhice (da fragilidade que ela submete a carne e a consciência, mas também do vigor que concede a alma após reconhecer o conjunto de experiências empíricas que o constitui como um ser potente, como é visto num dos momentos mais bonitos da obra quando Serie reconhece Denken como um mago de primeira classe, reconhece uma centelha de potencial que ainda não se extinguiu dele, isto não poderia ser mais Hermann Hesse, ou “Com a maturidade fica-se mais jovem”) ou da brevidade da vida, etc., não poderia me encantar mais do que é feita aqui, numa obra tão madura quanto Sousou no Frieren, e se, aliás, é para falar sobre a brevidade da vida não tem como não entoar Ricardo Reis (Fernando Pessoa):
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.”
https://x.com/YGP__/status/1849255292501926120?t=M-bWvcePWBrC8WuEIDW0vQ&s=19
Acho que o de 97 é a melhor adaptação de Berserk. A de 2016 é ok, mas não é tão profunda na história como a de 97, a meu ver.
Não obstante, há Ishinomori Shotaro como mangaká e cartunista, ou seja, inigualável, inimitável, aquele que, mesmo proferido num episódio jocoso, foi cognominado pelo "Mangá no Kamisama", Osamu Tezuka — seu mentor —, como o Deus dos mangás (inelutavelmente, como o próprio Tezuka já o era). Contudo, imaginando além, Ishinomori seria mais precisamente um Deus xintoísta dos mangás, um Kami (神) que escreve, decupa e desenha com o arrojo e, equidistantemente, com a serenidade que os grandes poetas do período Edo — Bashõ e Onitsura — tecem suas líricas tapeçarias haikais diante suas vidas errantes, vagueantes e panteístas. A poética de Jun também se encontra nesse reflexo entre o eu-lírico (porém em Jun, em constante reatividade, em processo de diluição e confusão) sobre a inevitabilidade do tempo como entidade fenomenológica do movimento retilíneo (dos quadros, da maturação dos corpos, da metamorfose das criaturas, da folha que despenca gradativamente entre as sarjetas da página — do capítulo "To Wait" — até o contato dela na superfície da água provocar/contrapor a uma tempestade marítima e climática, etc. etc.) e da irrevogabilidade da circularidade do movimento samsárico (dos eternos reencontros e desencontros) expressas no In-yun budista exercida em Jun, já a metapoesia em Jun é o esforço da última fração do cogito, existente numa obra sobre tantas vertigens temporais, em ruminar aquelas experiências sensoriais a partir da reflexão enquanto arte, enquanto expressão artística, enquanto exercício estético e linguístico. A criação (um rito mimético que torna turvo a linha que separa a ficção e a realidade na obra) é o que permite a passagem do personagem Jun (e de nós, leitores) enquanto testemunha(s) terceira(s) para participante(s) involuntário(s) de uma experiência metafísica e patafísica tal qual a relação que o próprio protagonista teve com o signo da árvore (no decurso da obra) que, aliás, começa no terceiro capítulo (The Time Horse) e se amplia e se culmina no sétimo capítulo: "Soon, Autumn Will Be Here, and Then Winter Will Come", ou seja, o capítulo em que Jun se funde com a árvore e, por conseguinte, experiencia todo o efeito do tempo, da auspiciosidade de um mundo animista, da contingencialidade da temperatura, do clima, etc., na órbita, lhe rodeando, lhe envolvendo enquanto existe em um estatismo sereno e idílico, contraposta a relação funesta que Jun tem com o passado, no capítulo "The Legend of the Cold Wintry Wind", a partir desta mesma árvore, agora carcomida pelo tempo, pelo inverno face ao capítulo mais adiante, Spring Evening, capítulo este que se cria um espaço teatral para uma dança temporal circular, constituídas por pétalas de cerejeiras oriundas da mesma árvore, já a destruição da árvore, em The Girl (uma contraposição clara ao nome da bomba atômica lançada em Hiroshima, "Little Boy"), simboliza a cisão de Jun e o feminino (tanto como sua contraparte, quanto como o feminino imanente na natureza) que, após a explosão atômica o capítulo seguinte é o congelamento total do mundo de Jun, o capítulo se chama, literalmente, "The Ice Planet". Não é à toa que, semiologicamente, o vento assume-se como um dos maiores representantes imanentes do tempo (não é à toa o referir como Sr. Vento em certo trecho), este é fugidio para Jun e para ele é ensinado que se tornar o "coração do vento" é entender o coração das pessoas, dos animais, das coisas e, consequentemente, é conseguir se irmanar com o criativo, romper o bloqueio criativo que o consternava no segundo capítulo, pois o tempo é "um mago, governante da vida e da morte, ele vai responder todas as perguntas", caso esteja aberto a ela, ser um com o tempo, aspecto este refletido na linguagem do mangá num modelo de quadrinização que, mesmo comum no passado (segundo o próprio Shotaro), é rearticulado de maneira ímpar aqui, com quadros verticais e horizontais cuja duração é diminuta, as elipses operam através das sarjetas e os quadros estão relegados a efemeridade dos acontecimentos, relegados ao destino de separação do casal, da maturação e desvanecimento das coisas, do ciclo samsárico, etc., um tipo de clausura (num mangá que contém mais sarjetas do que grades em sua diagramação e decupagem) que em momentos pontuais a obra se emancipa e se coaliza com um valor surreal em sua imagética — de Max Ernst a René Magritte — logrando uma liberdade de expressão para além da relação entre quadros e sarjetas, já textualmente a maior inspiração criativa de Shotaro está na ascensão da ficção-científica literária que vai do final do século XIX até o fim dos anos 1960 — de H. G. Wells a Asimov e Arthur C. Clarke — nessa vontade, doravante, de desbravar espaço e tempo (estes em movimento de precessão ininterrupto) nunca antes desbravados. Uma obra, sem sombra de dúvidas, polímata na sua pluralidade de referências (ocidentais e orientais) e inclinações temáticas, mesmo que seja, uma obra, em última análise, sobre a deslocação inevitável ao Brahmā por meio da expressão artística, nesta lógica a escola budista japonesa, Mikkyô, tem grande influência ao imaginar a arte como intermédio soteriológico do homem ao Mukti.
Ainda não vi o segundo episódio do Uzumaki. Acabei desanimando um pouquinho com os animes. Só assisti direito o Ranma, pela nostalgia. D: Vou tentar assistir esse domingo aí depois te conto minhas impressões.
Cara, Sekiro eu achei muuito diferente dos outros. >.< Realmente não consegui me adaptar ao estilo de combate, como posso dizer? É mais estratégico, ataque e defesa, slá... não tô dizendo que seja um mal jogo, pelo contrário, é ótimo. Mas acho que não é pra mim. D:
Gostei do Uzumaki sim. De repente é a melhor adaptação de uma obra de Junji Ito pra anime, até agora.